04/05/2024

Do surgimento do bairro ao nascedouro das toadas do Boi de Maracanã

Caboclos de Pena do Boi de Maracanã

Por Thiago Bastos – Jornal O Estado do Maranhão

Bairro cuja origem remonta o século XIX a partir da iniciativa de famílias pioneiras viu nascer de sua terra um dos grupos mais conhecidas da cultura local

Eram 15h30 de uma quinta-feira (13) e o batalhão pesado se preparava para mais uma apresentação. De sua sede, em uma casa simples, surge membros e mais membros de um dos grupos mais conhecidos da cultura maranhense. O Boi de Maracanã é oriundo do pioneirismo de pessoas simples e leva o nome de um dos bairros cuja história se confunde com a formação urbana ludovicense. Um ritmo das matracas e dos pandeirões que existe não somente pela ação de nomes mais famosos, como seu Humberto, mas pela força de gente como dona Maria, João Vitor, Humberto Filho e tantos outros.

A existência da brincadeira se mistura às tradições dos povos que, séculos atrás, marcaram os seus traços no território de São Luís. Pela linguagem tupi, o nome “Maracanã” significa “pássaro grande”. Uma alusão ao termo araracanga que, de acordo com os herdeiros dos fundadores do bairro, seria uma ave e considerada espécie singular da fauna brasileira.

Na primeira metade do século XIX – por entre mangueiras seculares – o antigo Sítio Bacuri (que originou o bairro Maracanã) recebeu os seus primeiros habitantes. Um deles foi Manoel Jorge Valente, um fazendeiro que por aqui chegou para estabelecer negócios. Segundo historiadores, Valente era dono de fornos de olaria e, para auxiliar na catequização dos primeiros moradores, construiu capelas.

A partir da segunda metade do século XIX, famílias conhecidas como os Algarves, os Coutinho, os Pereira, os Barbosa e tantas outras começaram a vislumbrar um futuro promissor nas terras que ainda se encontravam distantes das principais localidades daquele tempo. Por ser, até então, um bairro praticamente isolado, os moradores necessitavam do transporte aquaviário para atravessar o Rio Bacanga.

As embarcações atracavam no antigo Porto Bacanguinha que, diariamente, promoviam viagens até o Desterro, onde os antigos habitantes iam praticar o chamado escambo (troca de mercadorias). Era comum ver, por exemplo, os moradores levarem alimentos em troca de objetos ou outros itens.

Consolidação

Aos poucos, o bairro foi se incorporando ao mapa urbano da capital maranhense. Trabalhadores oriundos do interior do estado e de outros bairros da cidade tentavam “a sorte” na localidade e, por ali, criavam animais e praticavam agricultura de subsistência.

A partir da primeira metade do século XX, com a passagem da linha férrea da Companhia Ferroviária do Norte, foi possível levar certo progresso à região. “Foi a partir daí que o comércio e outras atividades ganharam impulso”, disse Marlene Algarves, entrevistada pelo Repórter Mirante da TV Mirante em 2012.

Com o certo desenvolvimento a partir do comércio, várias pessoas que residiam em outras localidades passaram a ver o Maracanã como “um local de oportunidades”. Os mais antigos, em busca de nova vida não somente no aspecto econômico, levaram também as suas tradições e costumes.

Uma delas, fortemente registrada a partir da segunda metade do século XX – mais especificamente após a década de 1950 – era o chamado “Boi de Promessa”. São manifestações voltadas para os costumes da tradição de bumba-boi e que surgem a partir da devoção dos santos: São João, São Pedro e São Marçal.

Foi a partir da força de um homem chamado José Martins, antigo morador, que o “Boi de Promessa” se estabeleceu no Maracanã. Além dele, outras pessoas como seu Lourenço, Murilo Vitor, Zé Pé, Naide e tantos outros fomentaram a tradição. “São pessoas muito importantes e que constituíram, na verdade, o nascedouro do batalhão de Maracanã”, disse Maria José Soares, atual presidente do Boi de Maracanã.

Aos poucos, além destes, outros colaboradores também passaram a marcar seus nomes na história do boi que viraria mais tarde uma referência nas festas juninas da cidade. Um homem, em especial, merece toda a reverência por sua dedicação à brincadeira. E por pouco, o bumba-boi não perdeu um ícone para o samba.

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Do samba às primeiras apresentações, a força popular e a “lenda Humberto”

Com começo difícil, aos poucos, a manifestação ganhou adeptos e atualmente é referência nos principais arraiais da cidade; herança é orgulho para os filhos que seguem no boi, caso de Humberto Filho, Ribinha e Emanuel Victor

Em 1972, um ainda jovem chamado Humberto Barbosa Mendes fazia suas apresentações e arriscava seus versos na cadência do bom e velho samba. Por conselho de pessoas próximas, seu Humberto voltou seus olhos para uma manifestação ainda relativamente tímida e pouco conhecida na cidade mas que, comandada por seus baluartes, já representava o orgulho da aguerrida comunidade do Maracanã.

Era o começo da história de um verdadeiro ícone para a cultura popular maranhense associado com uma das manifestações que se tornariam, anos mais tarde, uma das referências na cultura. A capacidade de improviso de Seu Humberto e de enxergar, em fatos comuns do cotidiano, possibilidades de rimas e combinações de palavras, tornou inevitável sua inclusão no universo das toadas ritmadas pela cadência inconfundível das matracas.

Seu Humberto, antes de migrar para o bumba-boi, fez parte do “Maracanã do Samba”, antiga agremiação. “Foi um momento muito importante para seu Humberto, pois lá ele pôde se soltar como compositor e como referência para a comunidade”, disse João Vitor Rodrigues, caboclo de pena e referência do Boi de Maracanã.

Aos poucos e integrado ao agora Boi de Maracanã, seu Humberto começou a fazer história. Além de massificar o nome da brincadeira em outros cantos da cidade, ele também quebrou paradigmas. “Uma das primeiras medidas dele, quando assumiu de fato a brincadeira, foi incluir mulheres no grupo. Antes, era uma coisa só de homens, eles achavam que somente eles poderiam participar. Já Humberto [do Maracanã] dizia que as mulheres eram mais organizadas, mais concentradas e que todas estas competências deveriam ser incluídas na composição do grupo”, disse.

A medida trouxe coesão a uma manifestação já absolutamente unida. Aos poucos, o Boi de Maracanã começou a fazer parte da programação dos arraiais mais populares da cidade. Um deles foi o tradicional Arraial do Apeadouro, em São Luís. “Eu me lembro quando o batalhão pesado entrava aqui na rua principal do bairro e era realmente algo inacreditável. Era um grupo que, com a inclusão nos bairros, começou a ganhar destaque”, disse Maristela Raposo, uma das moradoras mais antigas do bairro.

Nas décadas de 1980 e 1990, o grupo era ainda mais conhecido nas manifestações tradicionais (arraiais e circuitos de rua). A cada apresentação, seu Humberto se transformava em lenda.

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Nasce “Humberto do Maracanã”

A história do Boi de Maracanã se “confunde” completamente com o roteiro de vida de Humberto. Para muitos, uma verdadeira lenda. Respeitadíssimo em sua comunidade, mesmo após quatro anos de seu falecimento (19 de janeiro de 2015), o amor do poeta popular à sua gente e ao seu boi começou oficialmente em 1973, quando se tornou amo do boi aos 34 anos de idade.

Nesta época, Humberto gozava de prestígio na comunidade, mas ainda não era reverenciado pelos fãs. A popularidade da brincadeira também se deve à capacidade de Humberto de compôr canções que, até hoje, não saem da memória do grande público. Seu grande orgulho foi ter conquistado o 23º Prêmio da Música Brasileira, em 2012. “Estar ao lado de grandes nomes da cultura, para mim, é algo que eu vou levar comigo para sempre”, disse Humberto à TV Mirante no mesmo ano.

Com mais de quatro décadas dedicadas à manifestação tradicional, Humberto se arriscava na escrita de suas primeiras toadas desde os 12 anos de idade. Ao “migrar” para o bumba-boi, Humberto e o Boi de Maracanã arrebataram seguidores e fãs.

A morte e o “pós-Humberto”

Os filhos de Humberto de Maracanã, herdeiros da cantoria

“E o Guriatã calou-se”. Foi o que O Estado transcreveu em sua edição do dia 20 de janeiro de 2015, um dia após a confirmação da morte de Humberto Barbosa Mendes, a maior “divindade” do Maracanã por sua dedicação ao grupo secular. Foi uma das maiores comoções vistas por um músico popular na história.

Sua morte causou enorme comoção não somente na comunidade local, mas em todo o segmento da cultura. De acordo com os familiares, após passar alguns dias internado no Hospital Carlos Macieira, Humberto do Maracanã veio a óbito por “falência múltipla dos órgãos em decorrência de choque séptico”.

Seis dias antes, o cantor e compositor estava em sua residência quando, ao se sentir mal, foi encaminhado às pressas para o hospital, onde deu entrada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) da unidade de saúde.

Se em vida, Humberto recebeu diversas homenagens, dentre elas, a Medalha do Mérito Timbira, cujo título fora entregue a ele em 1999 pela então governadora do Maranhão, Roseana Sarney, e o título de comendador em 2012, após a sua morte, o mito vira lenda de forma definitiva.

A reverência à Humberto foi concedida por políticos e artistas de renome nacional. “Calou-se a voz do cantador. O Guriatã voou para perto de Deus. A nossa brincadeira mais popular do São João, o Bumba-Meu-Boi, está de luto. Humberto, o Maracanã está triste, eu sei, mas junto à minha tristeza, a de todos. O céu tem mais uma estrela. Deus te abençoe”, escreveu a “marrom” Alcione, instantes após a morte do compositor.

Boi de Maracanã arrasta multidão na apresentação na Festa de São Marçal, no bairro João Paulo

Boi do Maracanã: força popular e herança nobre

“Maranhão, meu Tesouro, meu Torrão. Fiz esta toada, pra ti Maranhão. Terra do babaçu, que a natureza cultiva, esta palmeira nativa é que me dá inspiração. Na praia dos lençóis, tem um touro encantado. E o reinado do Rei Sebastião”. O canto da toada mais conhecida de seu Humberto é como se fosse o “bê-a-bá” de todos que integram atualmente o Boi do Maracanã. Um costume passado por gerações e que ajuda a fomentar uma brincadeira.

A emoção de cada palavra, de cada verso, é representada por quem tem conhecidas ligações de sangue com Humberto. “Meu pai sempre foi referência para nós, filhos. Um verdadeiro mestre!”, disse Humberto Filho, atual cantor do grupo.

Desde cedo, Humberto Filho frequentava a sede e os locais de apresentação. Ele é um dos que mais seguem a arte do pai, ao lado de “Ribinha” e “Emanuel Victor”. Para ele, o Boi de Maracanã só se tornou referência a partir da participação de Humberto do Maracanã. “Não há como separar o sucesso da brincadeira com a participação dele”, afirmou.

Outra discípula do “mestre” Humberto foi Leudgera Soares Mendes, filha de dona Maria Soares. Aos 18 anos de idade, ela é índia do boi de Maracanã. “A minha vida é o boi de Maacanã. Um orgulho fazer parte desta história”, afirmou.

O educador físico amante das toadas do Maracanã

Aos 24 anos de idade, o educador físico João Vitor Rodrigues é caboclo de pena do Boi do Maracanã. Desde os nove, ele brinca e ajuda os demais componentes na manutenção das fantasias, organização das apresentações e divulgação da brincadeira nas redes sociais. A O Estado, o componente não se vê em outro grupo. “Fazer parte do Maracanã é quase uma religião. É você, durante o restante do ano, pensar na manifestação e no que fazer para melhorá-la”, disse.

Ele confecciona a própria fantasia e dedica-se quase que integralmente à brincadeira. “Quando posso, estou aqui na minha segunda casa, a nossa sede”, disse. Apesar do afinco, ele não se esquece da formação profissional. “Pretendo associar às minhas habilitações de educador físico com as atividades adotadas aqui na brincadeira. Nas apresentações, a exigência física serve de base para meus estudos”, afirmou.

Sarney e a toada famosa do Maracanã

A frase “Maranhão, minha Terra, minha paixão” sintetiza com exatidão o amor do ex-presidente da República, José Sarney, pela sua terra querida. Estas palavras foram a base do hino de Humberto à cultura. O “Maranhão, minha Terra, minha paixão” descrito por Sarney virou “Maranhão, meu Tesouro, meu Torrão” nas palavras de seu Humberto.

Quem conta esta história é Maria Soares. Segundo ela, Humberto bradou os primeiros versos imediatamente. “Quando ele leu pela primeira vez as palavras do ex-presidente Sarney, ele [Humberto] começou a se dedicar aos versos famosos. Foi um verso atrás do outro. Ele sabia de cor, não precisava nem anotar”, disse.

Dedicação antes, durante e depois das apresentações

O Estado foi convidado na quinta-feira (13) pela direção do Boi do Maracanã para apresentar uma das apresentações previstas pela brincadeira no calendário deste ano. Na sede, aos poucos, os integrantes juntam suas indumentárias, se organizam nos ônibus (com pandeirões, matracas, maracás e outros) e seguem para o Hospital Nina Rodrigues, no Monte Castelo.

O percurso durou 30 minutos e, no caminho, algumas das toadas eram cantadas à capela, para manter o clima. Na chegada, alguns dos colaboradores checam por exemplo o sistema de som e a decoração. “São tantos detalhes que, às vezes, a gente não dá conta”, disse Maria Soares.

A exibição durou aproximadamente 45 minutos, tempo este bem reduzido em comparação à média das apresentações nos circuitos juninos ludovicenses. “Foi somente um aquecimento, mas para nós cada apresentação tem sempre o mesmo valor”, disse José Rodrigues, simpatizante do batalhão do Maracanã.

Os espectadores foram alguns dos pacientes e funcionários da unidade de saúde. “Eu amo esse batalhão do Maracanã. É uma tocada muito forte e que contagia quem gosta”, disse a funcionária Pâmela Soares.

Outras toadas e o registro em documentário

Além do “Torrão”, outras toadas tornaram-se famosas e foram cantadas a plenos pulmões pelos matraqueiros do Maraca. “A Coroa”, “Menina da Ponta da Areia”, “Reis na Encantaria”, “Banzeiro Grande”, e “Já Sei Onde Está Meu Veleiro” são algumas das mais conhecidas pelo grande público.

Em junho do ano passado, aspectos destas e de outras canções famosas foram compiladas no documentário “Guriatã”, filme sobre Humberto do Maracanã. Dirigido por Renata Amaral, em parceria com André Magalhães, a peça audiovisual foi elaborada após pouco mais de oito anos de pesquisa.

Humberto Filho segue os passos do pai, uma lenda de Maracanã

“Maranhão, meu tesouro, meu torrão”

(Humberto de Maracanã)

Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Fiz esta toada, pra ti Maranhão
Maranhão, meu tesouro, meu torrão
Eu fiz esta toada, pra ti Maranhão

Terra do babaçu
Que a natureza cultiva
Esta palmeira nativa
É que me dá inspiração

Na praia dos lençóis
Tem um touro encantado
E o reinado
Do rei Sebastião

Sereia canta na proa
Na mata o guriatã
Terra da pirunga doce
E tem a gostosa pitombotã
E todo ano, a grande festa da Jussara
No mês de Outubro no Maracanã

No mês de Junho tem o bumba-meu-boi
Que é festejado em louvor à São João
O amo canta e balança o maracá
A matraca e pandeiro
É quem faz tremer o chão

Esta herança foi deixada por nossos avós
Hoje cultivada por nós
Pra compôr tua história, Maranhão

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